outubro 22, 2007

4º Capítulo – Inefir Van Kirsh

Os primeiros dias de inverno que irrompiam o outono eram sempre acinzentados, misturando-se com o leve marrom e amarelo das folhas secas. Não havia neve, era apenas um dia nublado, como céu que ameaça derramar chuva. As arvores antes imponentes, agora se despiam a beira da estrada da fazenda Köhler. A carruagem viajava rapidamente, deixando marcas no solo escuro.
A mansão era uma construção muito antiga, feita em pedra e madeira. Na frente uma porta de quatro metros se erguia, as janelas eram vitrais. O carro para em frente a escadaria, uma menina vestindo uma capa vermelha e um vestido negro desce, suas malas são descarregadas pelos serviçais. O mordomo a acompanha até a sala de visitas.
- O senhor Köhler não poderá receber-me?
- Sinto muito, meine dame – respondeu o mordomo - Fürst Köhler não se encontra em casa durante as manhãs. Ele sai com o sócio bem cedo.
- Quantas pessoas moram com o senhor Köhler?
- Por enquanto duas pessoas, meine dame, seus convidados Lucian Baudelaire e Caio Zayed. Não existe previsões sobre o tempo que ficarão na masão. Mon seigneur Baudelaire está conosco há sete meses, creio eu. Senhor Zayed chegara há algumas semanas. Seus aposentos já estão arrumados, creio que a senhorita queira repousar após uma viagem tão longa.
Ela confirma com a cabeça. Os dois sobem a escadaria feita em mogno, Inefir observa cada detalhe do corrimão. Eles seguem até o fim do corredor, entram na última porta a esquerda. Os pés trilham um passo após o outro, os olhos se fixam nas irregularidades das pedras no chão. O quarto era totalmente decorado em mogno e tecidos de cores neutras, havia uma cama de casal muito grande no centro do cômodo, a frente dela um baú destinado as roupas. Ao lado oposto a entrada, uma grande sacada com trepadeiras que estavam aparentemente mortas por causa do inverno. Existia um portal a frente da cama que levava a uma sala íntima com um grande sofá, duas poltronas, estantes de livros e uma escrivaninha. Em cada sala havia uma lareira e algumas lenhas depostas ao lado dela.
A bagagem da menina é deixada no quarto.
- Descanse, quando a senhorita acordar, pedirei que a camareira venha arrumar seus pertences – diz o mordomo, se retirando.
Sentindo o corpo fatigado, a pequena se entregou ao colchão macio e lençóis brancos e sedosos. Os pés descalços enrolavam-se aos tecidos para afugentar o frio, as pálpebras caiam pesadas. Ouvia apenas sons abafados, o ranger de casa velha, o cochicho da fofoca da criadagem, o respirar fundo, distante, de alguém que dormia. Adormeceu, vestia a capa vermelha e o vestido negro, não se dera ao trabalho de trocar-se. Desde a morte de seus pais Inefir não sentia liberdade para sonhar. Costumava ter um sono leve, raras vezes tinha pesadelos.
A noite desvirginava o dia, libertando Johann de sua prisão feita de luz. Ele troca suas roupas e vai ter com o mordomo:
- A senhorita Van Kirsh chegou?
- Sim, mein herr, eu a acomodei no quarto ao lado do teu.
Surpreso, Köhler olha para o corredor, onde ainda se encontravam três malas. Ele era capaz de sentir cada ser que pisasse em seus domínios, no entanto, não percebera mais que uma carruagem e um simples motorista chegando. A garota passara despercebida, não sabia como, mas até para ele, ela se tornava invisível quando desejava. Com um aceno ele pede para que o mordomo continue com seus afazeres. Sozinho, ele caminha até o quarto. Toca a maçaneta e para, pensativo.
Ainda adormecida, Inefir sente um peso deitar-se ao seu lado. A cama afunda e braços entrelaçam seu corpo, apertando fortemente e trazendo para perto de um corpo. Ela tenta abrir os olhos, mas algo parece prende-la ao sono. Mãos grandes percorrem o interior de sua capa, tocando seus cabelos e rosto, retirando-lhe o capuz. O corpo lateja, perdendo-se entre medo e raiva, enfim ela se solta. Analisa o quarto em busca de alguém, só encontra Johann abrindo a porta. Ela percebe que o capuz fora retirado.
- Perdoe-me por não recebê-la – diz Köhler – Costumo ocupar-me com os trabalhos da fazenda durante o dia, dificilmente a encontrarei cedo.
- Compreendo perfeitamente, senhor – ela se levanta e ajeita o vestido – Meu pai era um homem ocupado, a solidão não me incomoda. Quanto a recepção, não precisas te preocupar comigo. Fui muito bem recebida.
- Alegro-me em ver que agora tu falas muito mais que em nosso primeiro encontro.
- Fez-se necessário, agora eu preciso saber como viver sozinha.
- Não mais, eu a trouxe para minha casa para que ela seja tua casa também. Sei que não serei teu pai, longe de mim tentar ser. Mas eu prefiro vê-la aqui a saber que estás em um orfanato. Venha, lhe apresentarei aos meus companheiro. Eles viverão temporariamente conosco.
Juntos, eles descem as escadas até a sala de jantar. Lucian e Caio estão sentados, levantam-se e cumprimentam Inefir. Johann puxa a cadeira ao seu lado e a convida a sentar.
- Este é Lucian Baudelaire, um amigo francês que passará muito tempo conosco, e este é Caio Zayed.
Cumprimenta-os e se acomoda na cadeira. O mordomo serve Inefir enquanto Lucian conversa com Johann sobre algumas decisões políticas do rei inglês. Caio levanta e coloca um pouco de lenha na lareira, acende o fogo. A menina analisa os três homens, detalha seus movimentos e mentaliza algumas situações, pressupõe suas personalidades. Percebe que Zayed demonstra ser o mais rústico, porém seus movimentos eram cuidadosos e meticulosamente calculados. As mãos possuíam uma habilidade incrível. Johann é o mais sério, compenetrado, preocupava-se em ouvir e falar pouco. Lucian era o único que se permitia um convívio mais sociável, embora seus sorrisos fossem vazios. Mesmo aparentando ser o mais novo, sua voz carregava o peso do mundo.
Ela come muito pouco, limpa os lábios com um lenço. Lucian a olha e sorri:
- Satisfeita? Se quiseres peço a copeira para trazer-lhe algo doce.
- Não é necessário, obrigada. Mas estou sem sono, não gostaria de recolher-me agora.
- Ótimo, então venha conosco até a sala de visitas.
O único cômodo da casa que não possuía o tom sério de Johann era a sala de visitas. Ela havia sido decorada por uma moça que morara com ele durante alguns anos. Köhler fizera questão de apagar cada vestígio da presença daquela mulher, menos aquela sala, que não lhe incomodava. Parecia estar a parte de toda a casa. As cortinas eram douradas, as cores vivas tornavam a noite de inverno da Alemanha um pouco mais agradável.
Enquanto Baudelaire serve pequenas taças com licor, Johann senta-se ao lado de Inefir:
- Já que estás aqui, é importante que eu saiba como estão os teus estudos.
- Senhor, antes de me levarem para o orfanato, meu pai me ensinava espanhol e noções de economia básica.
- Seu pai lhe ensinava música?
- Não, senhor. Este era meu passatempo, sentava-me a frente do piano e ouvia os sons das teclas, uma a uma. Logo percebi que poderia tocar.
- Se interessa por ciências exatas?
- Um pouco, mas a Igreja não aprova.
- Eu não sigo as regras do papa. Estudarás o que tiveres vontade. Eu contratarei um professor na capital.
- Se aprovares, Johann – diz Lucian – eu serei o mentor da menina. Viajei muito e conheço além de teorias, posso ensinar-lhe algo sobre políticas de Estado. Darei aulas a noite e durante o dia exercitarás o que tiveres aprendido no dia anterior. O que mais gostas de estudar?
- Línguas, literatura e música – responde Inefir.
- Pois bem, tu serás o mentor da menina. Podes usar todos os livros que estão na biblioteca. Caso precises de outros, avise-me e mandarei traze-los.
- Tens uma biblioteca? – Van Kirsh fala, atônita – Mas os livros são posse da Igreja.
- Sim, e algumas obras de arte proibidas também. – ele sorri de forma fria – Outra coisa que acho importante. Caio lhe ensinará a montar.
Caio para de mexer nos livros que estavam em uma estante próxima a janela. Surpreso, ele olha para Johann:
- Creio que não terei tempo.
- O cocheiro dará lições durante as manhãs e tu cavalgarás no fim da tarde com ela, apenas para que ela treine com alguém mais experiente.
- Sim, Johann – responde Zayed, contrariado.
- Ótimo.
Era óbvio que Caio não sabia lidar com pessoas, muito menos com crianças, mesmo se tratando da precoce Inefir. O encanto de Johann e Lucian pela menina era claro. Há trinta anos eles haviam acolhido uma garota chamada Margot. Ela era membro da família Braddock, uma irresponsabilidade pela qual Baudelaire sempre criticara Satidus, transformar uma criança de doze anos em uma criatura da noite.