Império Sacro Romano Germânico – Ano 1407 d.C.
Noite fria e silenciosa, nada incomum para Johann. Era assim sempre, trancava-se em sua fazenda e esperava dias até sentir-se obrigado a sair e pegar um carro até a cidade. Seu compromisso, no entanto, fugia totalmente de sua rotina. Ele esperava uma visita formal, iria jantar com o senhor Joseph Van Kirsh, um amigo de muitos anos que iria avaliar suas posses e auxiliá-lo na compra de terras na Bavária. Seus empregados preparam um típico banquete germânico, respeitando o gosto refinado do convidado.
O senhor Johann Köhler era um homem distinto, um barão que honrava o escudo de sua família. Possuía cabelos negros que, normalmente, prendia em trança alcançando seus ombros. Seus olhos eram de um negror incomparável, mergulhados em seriedade e mistério. Possuía uma estatura mediana para sua origem saxônia, a pele era pálida, quase morta. Aparentava ter quarenta anos, mas nem a idade lhe fez necessários esposa e filhos.
O clã Köhler estava há quatro séculos na Germânia, eram responsáveis por mais da metade do desenvolvimento do país, mas poucos podiam vê-los. Normalmente, apenas seus serviçais, que eram escolhidos a dedo e deveriam passar sua vida inteira servindo-os.
Köhler serve-se de um pouco de vinho, senta-se a frente da lareira e chama seu mordomo.
- O senhor Van Kirsh cruzou o portão de entrada, deve chegar à frente da casa em dez minutos, quero que ele e sua família sejam recebidos à porta. Coloquem a mesa e sejam impecáveis. Peça ao cocheiro para desatrelar a carruagem e guardar os cavalos no meu estábulo. Sirva um pouco de vinho para o senhor e licor a sua senhora, quanto à criança, leve alguns biscoitos de gengibre e um pouco de chocolate quente. Avise que descerei em cinco minutos.
O mordomo se retira. Era comum que Johann soubesse da chegada de seus convidados sem que eles fossem anunciados. Aquelas eram as suas terras, seu refúgio, conhecia o cheiro de cada animal que andava sobre elas, conhecia a leveza de cada passo, o impacto de cada pata ou pé humano. Normalmente não gostava de visitas, só as recebia para tratar de negócios, quando seu contador não podia fazê-lo ou quando se tratava de algo extremamente pessoal. A compra das terras era um segredo, um negócio que deveria ser feito com cautela.
Joseph foi levado à sala de visitas, servido adequadamente, aguardava Johann sentado, tentando aquecer-se. Era um economista renomado, responsável pelas posses de muitos nobres do Império. Ele mesmo era um nobre, mas estava falido por causa das dívidas e luxos de sua mulher Marie. Sua pequena filha possuía nove anos, estudara com o pai desde os quatro. Já falava três línguas, alemão, francês e inglês. Seus dedos eram precisos ao tocar um piano, mas sua voz quase não era ouvida, mesmo ao dia-a-dia, ela sempre permanecia calada. Costumava trocar algumas palavras apenas com seu pai.
- Espero que o senhor tenha apreciado o vinho – Johann entra no cômodo – Um amigo enviou-me algumas garrafas da França.
- Recepção impecável, meu amigo, fico feliz em conhecer sua casa.
- Indelicadeza a minha não receber muitos convidados, mas viajo muito, por isso é mais prático visitá-los. O jantar está servido. Venham.
Sentaram-se junto à mesa e degustaram o jantar. Johann apenas os observava, tomando vinho e comendo poucos pedaços de carne bovina mal-passada. Conversaram sobre os últimos acontecimentos políticos e um pouco de moda. Marie falava das fofocas da nobreza, enquanto Köhler bocejava entediado, mas sorria para manter a compostura e não matar a mulher que não dava descanso a própria língua, dizendo futilidades. O que realmente lhe chamou atenção foi a menina, Inefir comia vagarosamente, não olhava para cima, os olhos cerrados acompanhavam a comida sendo elevada sobre o garfo e se fechavam levemente quando o talher chegava a boca.
Após o jantar todos foram até a sala de música onde Johann serviu-lhes licor e sentou-se junto ao piano. Seus dedos eram rápidos e o gosto por música refinado, tocou duas canções até que a criança levantou-se. Aproximou-se do piano e, encarando-o com uma segurança surpreendente, disse:
- O senhor me permite tocar? Isto é um dueto.
Ele se afasta dando espaço para a garota, com um ar superior ela coloca os dedinhos sobre as teclas de marfim, tão pálidas como a pele infantil. Johann dá a primeira nota, começa a canção, ela a executa divinamente, fechando os olhos e deixando que cada ponto harmônico a leva-se a nota seguinte. Os dentinhos mordem os lábios inferiores, aquilo era paixão, nada a menos. Por isso preservava as palavras, preferia descansar a língua e comunicar-se através das mãos, através daquela propagação esplendorosa de som. Köhler deixa que ela tome o controle da melodia, fecha os olhos e prova a mesma sensação, então ele diz:
- Use tua voz, quero ouvi-la. Apenas acompanhe a música com a tua voz, de forma delicada.
Inefir sente-se insegura, mas o pedido era irrecusável, algo naquele homem a atraia a ponto de obedecer a cada palavra. Ela deixa o ar passar entre a boca semi-aberta, os olhos reviram como se algo guiasse sua voz para o tom exato que Johann queria. O som era mais puro que o toque de água sobre a face de uma virgem, cada vibração daquelas cordas vocais soavam como o orgasmo da mais bela ninfa guardada por Gaia. Não era nada muito agudo, nem grave. Era suave, apenas isso. Não importava como ela deveria fazê-lo, apenas deixava sua vontade ultrapassar o limite de sua voz.
- Basta, pequena, foi o suficiente por hoje. Minhas mãos já estão velhas para acompanhar teu ritmo. Sente-se junto ao teu pai.
O barão já havia ouvido vários pianistas, mas nada se comparava aquela menina. O restante da visita foi formal. Até o momento em que o senhor Van Kirsh e Johann foram ao escritório.
- Caro Joseph, me perdoe por pedir que tratemos de negócios justamente nesta hora, mas creio que nossa transação seja complicada. – dizia enquanto retirava alguns papeis de um cofre embutido na parede – Como havia lhe instruído, as terras devem estar em meu nome, mas para todos os efeitos, serão usufruídas por outra pessoa.
- As terras que o senhor pretende comprar são de um conde, ele exige que o nome desta pessoa seja revelado. É apenas uma questão familiar, parece que ele possui desafetos com algumas famílias francesas, por isso dificultará a venda caso o senhor não possa lhe dar certeza de que o inquilino não pertença a estas famílias.
- Diga que o senhor Lucian Baudelaire precisa se retirar da França, graças ao comportamento hostil inglês. Estas guerras, apenas loucuras, lhe dou certeza de que não há uma razão plausível para tudo isso.
- Não questiono o que aqueles governantes consideram certo, eles sabem o que fazem.
- Desculpe-me, mas isso tudo é loucura. Meu amigo escolheu deixar sua terra natal por ter atritos com a nobreza, por discordar do conflito armado.
- Estranho, pela fama do senhor Baudelaire, ele é um excelente estrategista. A família vive da arte da guerra há muitas gerações.
- Sim, mas esta já completa setenta anos, ele mesmo disse,é uma guerra que dificilmente será vencida, a batalha vencerá os homens. Ele me pede refugio, apenas isso. Negou-se a ajudar o rei Carlos VI, tornou-se uma espécie de inimigo do reino. Mas eu confio no julgamento de Lucian, ele não se precipitaria a ponto de afrontar o rei sem ter razão.
- De qualquer forma, eu providenciarei todos os documentos até o próximo mês, se o senhor pudesse tratar pessoalmente com o conde adiantaria o processo de compra. Sei que não se sentirá a vontade viajando até a Bavária, mas eu julgo de extrema importância já que o pedido de teu amigo foi tão urgente.
- Sim, quanto antes melhor. O senhor Baudelaire chegará dentro de cinco dias e se hospedará nesta casa. Esperarei uma semana até que meu visitante esteja mais disposto e iremos os dois até a Bavária. Assim não haverá dúvida de que as terras serão compradas por uma pessoa distinta.
- Bem, já está muito tarde, devo me apressar ou a viagem até Dresda será desgastante e perigosa.
- Meu mordomo os acompanhará, desculpe-me a indelicadeza, mas já passa da minha hora de dormir – ele pega uma pequena sacola de couro que estava dentro do cofre – Isso irá lhe auxiliar durante a transação. Quanto mais rápido fecharmos o negócio, maior será o teu pagamento.
- Obrigado, senhor Köhler, saberei cumprir as tuas expectativas.
Joseph desce as escada com a sensação de que Johann estaria logo atrás, mas ao voltar-se não vê nada, apenas um corredor velho com algumas pinturas nas paredes. Ele continua com passos inseguros, sempre observando ao redor para certificar-se de que nenhum mal mortal o atingisse. Apenas tolices, ele havia sido convidado, Köhler não deixaria a casa seguir a própria vontade. Chegando a sala, a família Van Kirsh foi levada até a carruagem e seguiu seu destino.
A cada dia que se passava desde o inicio da guerra entre Inglaterra e França, Köhler via-se obrigado a tomar partido. Não era simplesmente uma rixa entre dois países. Existiam interesses obscuros, pessoas mais poderosas que reis que apenas enviavam ordens aos governos.
- Acalme-se, Johann, não sentirão minha falta na França. Passei os últimos meses trancado em minha casa.
Um homem sai de um canto do quarto, desloca-se próximo as paredes. Possuía dois metros de altura, cabelos longos e negros caiam até sua cintura e, mesmo coberto pela escuridão, percebia-se a pele alva.
- Descanse, senhor, não o esperava, mas é sempre uma honra tê-lo em minha casa. Sinto muito por não recebe-lo adequadamente, mas o servirei da melhor forma possível.
Lucian Baudelaire era o principal nome da Europa. Muitos homens ricos e poderosos o respeitavam e chegavam a trata-lo como um mestre. Dentro da França suas riquezas ultrapassavam as da coroa e, em sigilo mortal, suas decisões políticas estavam acima do rei. Aparentava apenas vinte anos, mas carregava sabedoria em suas palavras e transmitia um ar experiente. Os olhos verdes e opacos carregavam milênios e mágoas.
- Meu bom e fiel amigo Johann, agradeço por tê-lo como meu aliado. Saibas que perdemos muito, se adiantei minha vigem foi por causa de uma traição. – ele senta em um divã próximo a janela – Esperei décadas até este momento, não me permiti adormecer como aqueles que nasceram junto a mim, apenas esperando este dia. Meu pai sempre me disse que tudo seria calmo, lento, mas que cada fato seria um passo até a luta da qual não posso fugir. O clã Braddock nos traiu.
Köhler apóia-se em uma cadeira, senta-se lentamente, sua expressão muda te tal forma que aquele líder seguro da espaço a um homem assustado. Os olhos procuram respostas no rosto do amigo:
- Lucian, como puderam jogar fora o tratado? Aqueles presunçosos! Jogaram décadas de paz fora, como se não fossem nada!
- Eu confesso que não esperava uma atitude diferente de Zilan. Ele tomou as rédeas da família há uma semana, aproveitou-se da guerra entre a França e a Inglaterra, mandou cem homens atacarem meu castelo. Sua inexperiência é enorme, ele realmente acreditou que cem homens de sua guarda comum poderiam me derrubar.
- Satidus nunca permitiria isso! Ele não fez nada?
- Satidus foi morto. – a face de mármore de Lucian é quebrada por uma única lágrima que se precipita de seus olhos – Ainda não descobrimos o que aconteceu de fato, mas encontraram-no em seu quarto, próximo a lareira. Eu recolhi o corpo, ordenei que Zychnyr não deixasse outras pessoas vê-lo. Homens de linhagem antiga guardam muitos segredos em sua morte. Enfim, apenas seguimos o protocolo. Zilan era a criança treinada para suceder Satidus, mas creio que ele não esteja pronto.
- Zilan é apenas um moleque! Demônios! Ele não é capaz de governar a Inglaterra.
Quando o feudalismo foi instalado na Europa, Lucian convocou um conselho para decidir o destino dos vampiros. Satidus considerava o governo humano fraco, por isso projetou uma espécie de estado secreto, comandado por vampiros, disfarçados em famílias nobres. A forma de governo humana não seria alterada, poderia ser uma monarquia, império, democracia, não importava, o real poder estaria nas mãos daqueles que caminhavam entre as sombras. Eles interviriam sempre que o Estado fosse contra os interesses das criaturas da noite.
Cada país teria uma família. Baudelaire ocupou a França, os Braddock tomaram a Inglaterra. Com o tempo, a Inglaterra perdeu poder para a França e Lucian se tornou o líder mais respeitado e temido da Europa. Conflitos começaram a surgir e fugiram do controle dos governantes. A única saída foi um tratado de paz. O novo relacionamento entre os dois países era a menina dos olhos de Lucian e Satidus. O comércio crescia rapidamente, a Alemanha se colocava de forma pacifica com os dois países, já que dependia em boa parte dos produtos ingleses e franceses.
Johann se recompôs, serviu-se uma taça de licor e outra para Lucian.
- Não há muito que possa ser feito agora. Eu tenho imensa honra em recebe-lo, Baudelaire. Fique aqui até que seu país esteja totalmente seguro.
- Aguardo notícias de Caio, ele está voltando da Romênia. Assim que minha criança chegar, iremos reaver minhas terras e acabar com a prepotência de Zilan. Entendo que muito poder em mãos jovens resulte em erros, mas não posso ignorar uma falha como esta.
setembro 16, 2007
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2 comentários:
o.O opa Sou o PRI!!
Vc escreve bem!! parabens!!!
agora estarei aguardando as continuações!!!
mto legal mesmo!!
Um abraço!
Excelente Larissa! xD
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